Chegou assim, sem falar nada. Mudamente, como se sempre estivesse estado ali, sentou-se no sofá da sala. Sentou, esticou as pernas, ligou a televisão (e ainda escolheu o canal). Cansada da TV, procurou o som. Espalhou meus discos, prateleira tão organizada. Trouxe, assim, música para os meus dias. Trilha sonora calada, canção de ninar para os sonhos. Foi até a cozinha, abriu as panelas, deixou as gavetas abertas e me disse o que queria para o jantar. A sobremesa? Por sua conta. Doce, infinitamente doce, açúcar aliviando a tensão dos dias amargos. Cansada da longa viagem até onde estamos, foi tomar banho. Tomou, usou meu sabonete e estendeu a sua toalha sobre a minha. Fiz a cópia das chaves, assim você nem precisa bater. Simplesmente entra, sem pedir sequer permissão para permanecer.
domingo, 23 de novembro de 2008
sexta-feira, 21 de novembro de 2008
viagem astral
Dias são anos, ou anos são dias? Há dias te encontrei. Há anos te conheço. Idéias palavras, conversas (ainda que mudas). Um trem, um destino, a primeira viagem. Um pretexto para mais uma tarde. Longas horas (sempre tão curtas!). E a viagem? Calçadas, ruas, um museu e um transatlântico que sumiu. Imagens, lembranças. Retorno. Outro trem. Músicas falam mais e o silêncio grita. Voltamos. A mesma cidadela, o mesmo cenário. Novas horas, porém. A minha viagem, a sua viagem. Enfim, a nossa viagem.
Leandra
Você chega e nem fala nada. Olhares vagos por aí, algum lugar, palavras perdidas ou, encontradas. Encontradas por quem as espera e, sobretudo, entende a busca. Minha e sua? Só sua , só minha? Os caminhos são distintos, os objetivos parecidos apesar de toda a diferença. Não há nada que nos faça igual e sobretudo há algo que nos une. São sentimentos, sensações, idéias. Tudo muda quando estamos perto. Proximidade essa que não sou capaz de compreender. Porque conheço somente aquela que os laços de sangue me deram ou que os vazios laços de amor me proporcionaram. Reconhecimento de almas? Talvez, quem pode dizer o contrário? Sei que te conheço. E, o que desconheço, a cada dia me faz querer conhecer por completo.
segunda-feira, 20 de outubro de 2008
por mar ou terra
Ora piscina cheia, ora tanque seco, vazio completo. Emoções que transbordam, vazios que me inundam. Ando ou nado por aí. Nunca sei, o tempo muda tão depressa, o rio sempre enche tão rápido. Na bolsa carrego sapatos ou nadadeiras. São sempre úteis para explorar meus caminhos solitários ou as minhas enchentes de emoções. Emoções que extravasam. Transbordam o enorme tanque da minha alma. Tanque raso que esgota a mesma água que transborda num instante. Minhas ruas são canais. Meus canais são calçadas pedregosas, mal acabadas. Mas, imperfeitas ou não, insistem em apontar-me caminhos. Sigo, mas me perco. Me perco e me encontro. Me encontro por aí, trocando passos com estranhos ou velhos conhecidos imaginários, tropeçando nas minhas próprias pernas, cadarços e nadadeiras. Sou nada mais que um grande emaranhado de galerias pluviais, fluviais, eu que sei. Não sei suas classificações. Sei que não me encontro. Sei que me encontro. E, sobretudo, sei que sou sempre eu. Sempre a mesma percorrendo os caminhos do mesmo velho cenário.
cárcere privado
Complexidade inútil que me persegue. Perseguição que me assombra. Por que é preciso sentir? Não quero mais o dom de mergulhar na complexidade alheia. Já basta a minha própria. Sempre de olhos fechados, tateando às cegas momentos que esbarram em mim. Momentos e caminhos que não são meus. Esbarram e me derrubam, tamanha é a intensidade do choque. Choque que me choca. Choca ou deixa estáticos os meus sentidos. Choque de luz para os meus olhos. Luz demais também cega. Claros e escuros, olhos turvos. Vejo, então, para dentro. Obrigada a olhar para dentro de mim. Não sei se gosto do que vejo. E, se gosto, não sei se compreendo. Me imaginava mais forte. E, agora, o que eu vejo de fato? Vejo um vulto de uma alma apressada em se esconder. Se esconde de que? Não sei. E nem ela sabe. Alma pequenina, torpe menininha. Reflexo da carne. Logo, também é cega. Turva como meus olhos. Fechada na escuridão de mim. Debate-se num emaranhado de veias. Afoga-se no meu sangue. Sangue que a mata e também a deixa viva. Abro, forçadamente, os olhos, janelas da minha alma. Arregalo-os. Será que alguém pode ver a pobre alma que se debate?
quinta-feira, 16 de outubro de 2008
mantras
sexta-feira, 10 de outubro de 2008
proteção mútua
Se você estivesse aqui, certamente, estaria melhor. Meus dias seriam preenchidos pela presença única que você representa. Teria com quem dividi-los. Haveria, também, com quem dividir o peso das horas. Não mais navegaria as minhas lágrimas sozinha. Nos dias felizes, sairíamos juntas. Você iria gostar das praças daqui. Sentaríamos à sombra de uma árvore e ficaríamos ali, na mudez de uma tarde. Sei que você não gosta de caminhar sob o sol. Mas, aqui, venta bastante, não esquenta tanto. Você só não iria gostar do inverno, chove muito. Mas aí poderíamos te comprar sapatinhos. Aqui você também pode dormir bastante. Dormiríamos juntas a siesta, nos faríamos companhia. Queria que você estivesse comigo. Eu te protegeria da chuva e te acordaria nos seus pesadelos. E você me protegeria do mundo. Não mais haveria solidão.
doce mel
Hoje estou com saudades de você. Todos os dias estou, é claro. Mas hoje, especificamente, queria – ou precisava – te pegar no colo, minha doce "menina". Queria te abraçar, olhar nos seus olhos – profundo olhar que ninguém é capaz de compreender. Queria brincar com você e retomar meu lado criança, como só você é capaz de fazer. Queria te arrumar, cuidar, arrumar seu "cabelo". Só eu entendo e, só você é capaz de me entender. O entendimento é mudo, plenitude sem palavras – elas são desnecessárias. Ninguém seria ou será capaz de entender cada linha do que digo. Nem mesmo você, querida menina alheia às palavras. No entanto, não cansaria de repeti-las, mesmo que mudamente, imersa num silêncio – e cumplicidade – profundo. Silêncio que fala e que, como tudo, só nós conseguimos entender. Amigas? Não. Somos, talvez, o mesmo universo. Universo particular meu e seu. Companheirismo único, incompreensível aos olhos vazios de quem, apenas, observa. Sinto falta de ti, doce pedaço de mim que ficou. Queria estar contigo, agora, "menina Mel".
segunda-feira, 6 de outubro de 2008
misteriosamente viva
Olho as pessoas, observo o mundo. Um dia, me falaram que Deus nos deu dois ouvidos e, apenas, uma boca para que nós pudéssemos falar menos e ouvir mais. Eu, como boa falante, sempre contestei essa afirmação dizendo que ele nos deu uma boca grande, todavia. E que, então, ela equivale ao nossos dois ouvidos, pequenos orifícios. No entanto, intimamente e com uma ingenuidade infante de quem acredita ter descoberto o mundo sozinha, eu sempre contestei a mim mesma: a boca só é grande para que possamos comer. E, se o alimento é o que nos mantém vivos, o tamanho da nossa boca é proporcional à nossa vontade de viver. Pois bem, voltando. Tenho observado muito o mundo, o que me permite, finalmente, compreender o que dizem sobre os ouvidos, a boca e, também, confirmar o que, internamente penso sobre essa gana de viver (e de comer). Aqui, somente escuto, vejo e como. Falar, não falo. Começo, então, a acreditar que não temos uma boca. Mas, sim, duas mãos para falar. Mãos que estão a serviço da palavra. Aqui, minhas mãos vivem escravas das impressões dos meus ouvidos e olhos. Expressões transformadas em símbolos, traduzidas em palavras. Observadora de um mundo que me expulsa e, também, me acolhe. Não o compreendo. Apenas o escuto, enxergo e, gloriosamente viva, o mastigo. Tamanha é a minha ânsia de viver.
sábado, 4 de outubro de 2008
novos dias
Num banco, entre dois limoeiros e com cinco dias de atraso, venho escrever. Cada dia de atraso, no entanto, representa um dia de muita importância. Hoje faz exatamente uma semana que estou aqui. Sem dúvida, uma semana inesquecível sob diversos aspectos. Deixar o Brasil, Curitiba, casa, família e amigos é uma decisão muito fácil e, até, bastante sedutora. Porém, o que não é nada fácil, é bancá-la. E, por mais que muitos sejam os motivos pelos quais nos convencemos a ir embora, muito pouco eles, de fato, representam quando chegamos ao nosso destino final. Durante esses dias, pude conhecer um pouco mais da Maria Augusta que me habita. Mais do que conhecer Pontevedra, a Espanha ou a Europa, essa viagem está sendo, é e será um encontro, uma viagem a mim mesma. O "velho continente" será apenas o meu plano de fundo. E, da mesma forma que não conseguirei desbravar em sua totalidade as terras européias, sei que não conseguirei me conhecer por inteiro, ainda. Tudo o que pensamos ser, o que imaginamos sentir ou as previsões que fazemos, são nada perto do que, de verdade, somos. E só descobrimos cada parte do que somos quando temos que viver e dar conta das nossas próprias reações, por mais inesperadas que elas sejam. Passado, então, o desespero inicial desse encontro comigo mesma, agora posso dizer que estou me inteirando de tudo por aqui. São muitas coisas para pensar, muita coisa para olhar e muitas são as dúvidas que sempre me chegam. Coisas da vida, afinal. Aos poucos vou, também, aprendendo a controlar o desespero, a assimilar o choque de cultura, língua e tantas outras diferenças que me afligem. Hora de ser forte e crescer. Todo dia é um novo dia.
andanças
Pontevedra é cheia de praças, uma mais bonita que a outra. Todos os dias ando um pouco mais para conhecê-la. Semana que vem meus horários entrarão nos eixos. Por enquanto, limito-me a acordar, comer e passear. E, quando a saudade aperta, é hora de andar por aí e sentar em algum lugar para escrever. Já percebi que não sou muito boa com diários. Não consigo descrever rotinas e lugares sem deixar que meu interior interfira no relato. Talvez por, como já disse, estar muito mais num processo de auto-conhecimento do que conhecendo, de fato, a cidade. Todos os dias aprendo um pouco mais com a minha própria solidão. Saio a noite, conheço pessoas, jantares e almoços sempre cheios de gente. Tudo tão cheio e tão vazio. Aqui experimento a sensação de ser nada mais do que um corpo estranho. Vago por ruas que desconheço, falo uma língua que não é a minha. Clarice tem sido a minha companhia constante. Por maior que seja a coincidência, o único livro dela que encontrei chama-se "Aprendiendo a vivir". São muitos contos da sua infância e das suas impressões tão ingênuas. E é, justamente, como essa menina Clarice que eu me sinto. Uma menina perdida num mundo gigante. Aprendendo, sozinha, o prazer e o enorme desprazer da solidão. No Brasil, por mais longe que estejamos de casa, ainda temos a nossa língua, o nosso país, o nosso lugar. Aqui não. Tenho duas malas de roupa e alguns objetivos. Objetivos que perderam a razão de ser em meio a tantos sentimentos misturados. Como disse Clarice, um dia, tenho apenas o prazer e o privilégio de estar viva. E, delicadamente viva, como, caminho e durmo. "Sozinha observo melhor as cores". De fato, tenho podido observar melhor as minhas cores. Não deixarei, então, que a minha alma torne-se cinza.
meus dias
Todos os dias um novo ciclo, mais um começo. Abro os olhos devagar, como quem tem medo de deixar o dia entrar. E, de fato, tenho. É sedutora e convidativa a idéia de voltar a dormir, fechar os olhos e imaginar que a cama é a minha, que o quarto é o meu. Doce engano de poucos minutos. O travesseiro, vilão das minhas noites, não me deixa esquecer que os pesadelos são parte da noite de quem dorme. Todos os dias me expulsa para fora da cama e me desperta no susto. Lavo então o rosto, para que a água se misture com as lágrimas e disfarce o rosto molhado. Logo vou tomar banho, e esperar que o chuveiro me afogue.
longa caminhada
Caminho por aí. Durante o trajeto, sem rumo, só vejo pernas e pés que, quase, me atropelam. De cabeça baixa, só olho para o chão, não posso me perder no caminho. É preciso olhar com atenção para saber voltar. Porém, caminho sem olhara para trás. Dessa forma, evito o risco de obedecer ao impulso de querer voltar. Ando sozinha, tropeçando nos meus pensamentos e na minha própria solidão. A cidade é pequena e eu sou menor, ainda. Tão pequena que ignoram a minha existência. Ninguém me acompanha no trajeto, ninguém me dá conselhos ou oferece ajuda. Curo meus medos e desesperos sozinha. Abafo o choro ou choro alto, desesperadamente. Tanto faz. Ninguém escuta ou percebe que eu choro.
domingo, 14 de setembro de 2008
bella menina bella
quarta-feira, 10 de setembro de 2008
check-in
segunda-feira, 1 de setembro de 2008
querer
domingo, 31 de agosto de 2008
encontro astral
sábado, 30 de agosto de 2008
não viver
quinta-feira, 28 de agosto de 2008
silenciamento
quarta-feira, 27 de agosto de 2008
pedaços celestes
Caminho olhando para o chão, procurando pedaços que me faltam. Ora mancando, ora me arrastando, vivo buscando. Ansiando encontrar tudo aquilo que perdi, que roubaram ou, até mesmo, que nasci sem. De todas as deficiências que me cabem, a única que não me deixa é a incansável vontade de amar. E é isso que me faz, muitas vezes, mudar o foco do olhar. Por ora, paro de olhar para o chão e avisto o céu, infinito de graça e beleza. Olho e procuro as pernas, os braços e os corpos das estrelas para integrar ao meu próprio corpo. E então, finalmente, poder olhar pra frente.
terça-feira, 26 de agosto de 2008
(ir)realidades
Imaginação traiçoeira, não te mostrou para mim como de fato era. Imaginei, sonhei, pensei. E, confesso, fiz pouco caso das sensações que me chegavam. Vi e não te vivi. Não sonhei e, até, não quis. Doce engano o de não te querer. Dilacero-me então, pelo desconserto de tudo o que se mostra. Tudo tão diferente e real. Tudo vivo dentro de uma realidade não inventada. Mas, sim, sentida e procurada. Me invento, te busco e me esqueço, então.
segunda-feira, 25 de agosto de 2008
dimensão
Sentirei falta de tudo aquilo que não puder levar. Sinto falta, agora. De tudo o que não pude carregar. O que me faz falta é tudo o que eu não posso sentir. As palavras que não posso ouvir, o olhar que não posso cruzar, o corpo que não posso tocar. Portas não abrem, os trincos não cedem. O país não diminui. E eu observo. Observadora constante, debruçada nas janelas da minha alma.
flor de maracujá
Corpo acetinado, morena em flor. Pétalas simétricas e, ainda, únicas. Simetria assimétrica. Desenho único, esculpido pelo erro da imperfeição. Perfume cítrico, maracujá em flor. Tem o verde como cor. Saliva doce, mel da fruta, néctar. Gosto em flor. Reinado único, onipresente, coroa em pétalas. Rainha-flor.
toque constante
Chegada. Encontro. Olhares. Surpresa. Dia claro, sol a pino. Cidade quente, forno de concreto. O tempo passa, atropelando os momentos e as etapas. Quebrando meus protocolos. Não há tempo para pensar. Os dias corridos não me interessam. A voz doce e suave que escuto não é aquela que pretendia ouvir. É outra, ainda melhor. Canto mudo, palavras abafadas. Não há o que dizer. As palavras chegam à língua, e ela se recusa a falar. Terras, oceano e tempo brigam com o destino. Destino, por si só, contraditório. Controvérsia em mim mesma. Fecho os olhos, procuro abrigo na escuridão. Esqueci de proteger os ouvidos. A música ainda toca. E me toca, profundamente.
abrigo escuro
Eu vou embora, logo vou. Dentre tudo o que eu sinto, o que mais me dói é não poder sentir. Queria viver o que o destino me priva. Queria gritar o que a minha garganta não berra. Queria ouvir o som que meus ouvidos não decifram. E meus olhos, ah os meus olhos. Só queriam avistar a imagem que insiste em turvar a minha retina. Fecho os olhos, então. Para ver e sentir. Para driblar o destino. Ludibriar meus ecos. Enganar meus ouvidos. Corro, vejo. Ouço, viajo. Grito, ecôo. Eco louco, desenfreado. Bate nas paredes da alma, nos tecidos do corpo. Escuto-o. Finalmente sonho.
quinta-feira, 14 de agosto de 2008
queda livre
Passeio pelo mundo, desligada. Paro numa esquina, sento num parque, escalo árvores, monto nuvens. Me jogo de um prédio. Pane no pára-quedas que me segura. Não sobra nada. No chão, um punhado de sonhos, ilusões, idéias. Logo ali, adiante da queda, o sonho de um mundo melhor. Um pouco à frente, a ilusão de uma vida simples, sem medos. E, esparramado por todos os lados, o medo. Medo de viver, de sonhar, de lutar. Mas, sobretudo, o medo de amar. Maior que todos os outros. Maior e mais forte, até, que a própria vida. Por isso caí. O medo me empurrou.
quinta-feira, 7 de agosto de 2008
todos os dias
Ensaio palavras. Começo a escrever, engulo tudo, apago. Escrevo cartas, verdadeiros tratados. Palavras profundas, sentimentos que transbordam. Mas, que de nada adiantam. Escrevo mas não envio, guardo, sufoco. E o que não digo, fervilha dentro de mim. Ebulição constante que me queima e arde. As palavras chegam à boca, atingem as pontas de meus dedos. E, numa loucura compulsiva, marcam o papel. Mas, como sempre, amasso a folha, atiro-a ao lixo. E espero. Espero ser lida sem mostrar o que escrevo. E espero, ainda, que meus tratados mentais cheguem a você. Senão pela escrita, pela intensidade com que sinto, penso e me torturo. Todos os dias.
domingo, 3 de agosto de 2008
ballet mórbido
Bailarina-trapezista, preparo-me para o espetáculo. Fecho os olhos, estico meu braço, alcanço a barra firme do trapézio e solto-me. Libero o corpo e me sinto leve, quase posso voar. A sensação de vôo livre que me invade é tão grande que chego a acreditar nela. Solto meus braços, desprendo-me da barra segura que me protege e que, solidariamente, estende a mão para me segurar. Libero-me das amarras, e caio. Cada vez mais rápido. Imprudente e sonhadora, não verifiquei se havia rede para me segurar ou um colo macio para cair. Tal qual meus sonhos e amores, fui de encontro à superfície dura e ríspida do picadeiro. Ainda assim, virei um espetáculo. Espetáculo morto.
fortaleza
repetição
quinta-feira, 31 de julho de 2008
escolhas
Céu de estrelas híbridas. Inferno de dúvidas. Céu e inferno, afinal. Inferno de pedra absolutamente confortável. Inferno para alguns, céu para outros. Ou, ainda, o paraíso. Confusão de sensações e vontades. O inferno pode ser bom e nunca mais quero ir embora. No fundo, tudo quer me prender. Um “tudo” forte, que tudo invade. Foi logo, foi rápido, nem deu para respirar, pensar entendimento ou ponderar situações. Apenas sentir. Apenas sinto. Vem comigo. Inferno, céu (ou paraíso?). Conceitos relativos?
sábado, 26 de julho de 2008
herança genética
Miro, profundamente, o espelho. E te vejo, ou me vejo então, ali. Somos duas e uma só. Duas porque sofremos e amamos diferente. Mas, uma, porque sou parte de você. Como você é tão parte de mim. Olho seus olhos através dos meus próprios e vejo a idade diferente nas marcas da pele. No entanto, as lágrimas que escorrem dos meus e dos seus, têm a mesma razão de ser. Derramamos o mesmo líquido salgado e sofremos tal qual a outra. Não temos o mesmo corpo e nem as mesmas convicções. Mas, o amor que nos cega, nos torna iguais na carne e na alma. Você é meu modelo. E até nisso copiei seu rastro. Fiz igual, sofro igual. E já não percebo mais as diferenças tão visíveis de outrora. O amor que nos cega também nos mistura. Mistura híbrida e única. A mesma carne, o mesmo gene, mãe e filha, afinal.
oração
Pontadas, agulhadas, perfurações. Todos os dias meu corpo padece e implora pelo fim da tortura sem nome, sem dignidade e sem face. Cada dia as lágrimas nascem no canto dos olhos com uma força infundada. Força e água que não sei de onde vêm. Pois há muito sou deserto parado, esperando ansiosamente pela morte, meu verdadeiro oásis. Sonho, viajo. Imagens que vêm à mente entre os intervalos alucinógenos da dor que me arde. Sinto tudo. Cada parte de mim grita e se desespera. Todas as noites, eu rezo. Canto louco que me escapa à boca. Não me acorde amanhã. Me deixe dormir, eu imploro. Amém.
quarta-feira, 23 de julho de 2008
marca ácida
terça-feira, 22 de julho de 2008
dom de fazer profecias
Um dia ela estava andando. Andanças rotineiras pelos vales do sul. Sobe, equilibra-se no parapeito estreito, abre os braços e cai. Cai até sentir a pedra áspera do asfalto arranhar-lhe o corpo e a alma. Imóvel, incapaz, perde os sentidos. Sente somente a dor que corta-lhe os músculos e a carne, que parte os ossos
domingo, 29 de junho de 2008
conversa fiada
terça-feira, 10 de junho de 2008
10 de junho
Hoje é aniversário do nada. Comemoração vazia, festa muda, alegria calada. Hoje brindo em comemoração às cinzas. Festejo o dia que não aconteceu. Enfeito a casa e me enfeito. Sento junto à porta e espero. Espero os convidados que não convidei. E, quando cansar de esperar aqueles que não virão, vou abrir um vinho e comemorar, sozinha, junto ao som ou à televisão. Acenderei a vela do bolo, cantarei parabéns sozinha. E, sozinha, irei apagá-la. Ao apagar, entoarei mudamente meu único pedido. Corto o bolo, distribuo os pedaços
terça-feira, 27 de maio de 2008
camaleônica?
Disfarces, são tantos os que existem por aí. Só eu, burra completa, não aprendi a usá-los. Não sei camuflar-me. Afinal, nasci mulher e não camaleão de sangue frio. Rastejo, nua e à mostra, sem roupa ou fantasia que me proteja da selva urbana em que vivemos. Encosto-me na árvore de mentiras e fico ali, descoberta, verdade vazia. Não sei colocar a máscara da frieza, da indiferença ou, então, ficar inerte aos princípios e valores – esquecidos – desse mundo. Preciso viver. Mesmo que rastejando, suja e nua pelas calçadas e pelas ruas. Preciso viver. Viver tudo o que me cabe. E, por não viver, é que muitas vezes me desfaço
pretensiosa realidade
A vontade é de ficar o resto da vida ali, mergulhada na infância perdida. Nos pedaços de papel amarelado, o retrato de uma criança esquecida. Tantos são os fragmentos. Coletânea mórbida de papeis brilhantes. Todos reunidos no interior da capa dura, igualmente amarelada. Cada pose, cada gesto, esconde os dias e as noites que vieram antes de a luz de um flash captar aquele ínfimo momento. Noites mal dormidas, dias que passaram mais rápido que o vento, mais rápido que o piscar de nossos olhos. Cada imagem, cada sorriso, todos tendenciosos, mostrando uma verdade inventada. Nunca vemos os dias ruins num álbum de fotos. Mas, são eles que nos levam de uma foto feliz à outra. A nós, resta viver os intervalos.
segunda-feira, 12 de maio de 2008
idas e vindas
Umas resolvem ficar, outras vão e jamais voltam. Outras são eternas lembranças de uma mente que, sequer, tem certeza se viveu, de fato, tudo o que lembra ou se, apenas, imaginou tantos detalhes usando sua imaginação fértil de criança. Algumas, ainda, vão embora sem deixar rastros ou pistas que indiquem o caminho que escolheram. E, de repente, sem falar nada, sem fazer barulho no portão, entram pela porta da sala da nossa casa. Entram, sentam no sofá e perguntam o que tem pro almoço. Assim, simples, como se sempre tivessem estado por ali, esperando a mesa ser posta e o almoço ficar pronto. Outras, não se afastam jamais. No entanto, nós acabamos por nos afastarmos delas. Então, quando menos esperamos, as lembranças ressurgem vívidas, ávidas, fortes, coloridas na lembrança. E relembramos com saudades daqueles que perdemos ao longo dos longos caminhos que percorremos pela vida. Mas, por hoje, chega. Vou guardar as outras lembranças para o próximo banco de praça em que eu possa me sentar e relembrar, reviver. Quem sabe, no próximo banco, você seja, apenas, mais uma dessas pessoas. Dessas que a vida encarregou-se de deixar na lembrança.
domingo, 4 de maio de 2008
memórias de um suicida
Seguro a faca afiada com força. As mãos quentes pelo sangue que corre esquentam, também, o cabo gelado da faca empunhada. Rasgo a pele e o sangue escorre. Limpo o líquido vermelho e pungente que insiste em escorregar pelos retalhos de pele grossa. Está frio, mas o calor do sangue me esquenta. A dor é gritante. Tão gritante que me cala, sofrendo quieta e muda. A memória se confunde com as impressões de agora. Não sei se choro pelo presente ou pela dor de outrora. Nem sei, ao menos, se o líquido quente e salgado que agora pinga dos olhos é sangue ou lágrima. Continuo recortando-me. Pedaço por pedaço, víscera por víscera. O sangue, agora, corre com mais força. No que sobrou do corpo, nos pedaços da alma e, também, nas pedras da calçada.
sexta-feira, 2 de maio de 2008
crescer dói
A vida passa, devasta os anos, furiosamente. O tempo corre, galopa cada dia mais veloz. Na correria, perdidos no tempo, não achamos espaço para parar um pouco. Para rever conceitos, reavaliar o passado. E, quando finalmente paramos, é quase impossível acreditar que tanto tempo já passou, que tanta vida foi deixada para trás. Aí, vem aquele momento em que pensamos: “eu era feliz e não sabia”. E relembramos a infância. O tempo em que a praia era limpa, em que o verão era quente, em que a vida passava lentamente. Conseguimos, até, nos enxergar pequeninos. Às vezes, naquela época, reclamando da vida. Reclamando da nossa grande responsabilidade de carregar o baldinho até a praia, quando, tudo o que queríamos, era ir com as mãos vazias, soltas sentindo a brisa do mar. Ah, se soubéssemos! Se conseguíssemos prever o futuro e nos ver hoje. Adultos com medo da vida, do tempo, ou da falta dele. Se pudéssemos, realmente, enxergar além do nosso mundo de criança, certamente aproveitaríamos mais. Ou não. Viveríamos angustiados com a certeza de que a parte simples e feliz da vida dura tão pouco.
sábado, 26 de abril de 2008
retorno ao extremo sul
Hoje estava andando pela rua. Ruas que há muito não visitava. Numa dessas viagens que a vida acaba nos obrigando a fazer. De repente, avistei um prédio. Construção antiga, desgastada pelo tempo. Sabia que seria difícil. Mas, ainda assim, cogitei a possibilidade remota de te encontrar. Antes de questionar o porteiro sobre a sua existência, fiz um esforço para tentar lembrar-me da voz e, também, prever qual seria a sua reação e a sua aparência, depois de tantos anos. Após longos minutos, entrei no hall do prédio e subi as escadas (aquelas mesmas que, um dia, vencemos juntas, carregando a mala pesada no dia da minha chegada). Olhei para o porteiro e perguntei sobre você. A moça bonita e simpática que, há tempos, viveu ali. O porteiro era novo, e não lembrava da moça descrita. “Mas moça, o porteiro que entra depois de mim é bem antigo”, ele disse. Voltei depois para falar com o antigo porteiro. “Olha, eu lembro dela, sim. Mas, há muitos anos ela se foi”, ele lembrou. Foi para onde, meu Deus? E assim, questionando-me, eu também parti.
quinta-feira, 24 de abril de 2008
dia anterior
Abro a porta que, indiscreta, grita anunciando a chegada. Limpo os pés no tapete surrado de retalhos coloridos. As tábuas do assoalho, marcadas pelo tempo, rangem, reclamando do peso que, há muito, não sentiam. Acendo a luz e espanto-me: ainda há luz. Luz fraca, amarelada, apagada, como tudo, pelo tempo. Os primeiros raios de luz denunciam o abandono dos aposentos. O pó preenche os espaços vazios. Os móveis, todos cinzas, cobertos pela ausência de vida. Ando, vago, revivo e reinvento. Me paro na imagem estática da cama, desde os últimos tempos, desarrumada. No banheiro, branco de outrora, a água amarelada da banheira resplandece, morta e podre, estática. Na cozinha, as xícaras do chá de maçã, os pratos do almoço, a panela do jantar e os talheres que guardam o gosto amargo das nossas salivas, impressões das línguas. Ainda há roupa no varal, estendida, esturricada pela falta de movimento, fibras petrificadas. E, no chão, os lençóis sujos da noite que, um dia, foi a noite anterior. A vitrola da sala grita e berra, pobre muda, som surdo, barulho sem voz, mas, extremamente, familiar. As janelas exibem-se, provocantes. Sinto vontade de toca-las, ímpeto, impulso de escancará-las para o dia. Para que a vida entre e penetre o virgem mausoléu sombrio. Nem que seja, apenas, mais essa vez.
terça-feira, 22 de abril de 2008
desertificação
Areia seca, fervente. Sol queimando o rosto, queimando a alma. Os raios entram através da carne permeável. Os olhos se fecham, a luz é forte demais. O corpo verte água. Um rio se forma. A ilusão de um rio. Miragens desérticas invadem o ser. A vida vai, aos poucos, desaparecendo sob o sol. Como uma poça d’água evaporando sobre a calçada. Lá na frente, entre as fendas quentes da areia, existe um oásis. Corra! Ainda há tempo para beber a minha alma.
quinta-feira, 27 de março de 2008
círculo secular
Você retorna. Volta, contorna, circula e faz rodeios em torno de mim. Não entendo e sigo assim mesmo, sem entender. Me confundo com seus círculos, me perco na roda que insiste em girar e parar, sempre, no mesmo lugar. Coisas estranhas. Mas, é assim que é o mundo. A Terra é assim mesmo. Dá voltas, gira em seu próprio eixo e sempre acaba caindo no mesmo ponto. Não adianta tentar mudar o curso. Você, filha da Terra, amante do mundo, não é diferente. Imita sua mãe, reproduz seus movimentos circulares. Volta, anda, vaga e se perde pelo mundo, vasto mundo de belezas tentadoras. Mas retorna, e recai novamente
domingo, 23 de março de 2008
minha menina
Noites
efemérides
Datas comemorativas. Belas datas comemorativas. Calendário marcado, fadado através das gerações. Triste sina. Os mesmos dias, as mesmas belas datas comemorativas. Nada muda, apesar da mudança dos anos. Os dias passam, as estações vêm e vão. E o calendário, pobre calendário, continua igual. Datas repetidas, famílias reproduzem os mesmos gestos, as mesmas tradições de outrora. E nada, nada muda. Permanece tudo igual, como numa triste linha de montagem secular. Repetimos os abraços, reproduzimos os sorrisos, fazemos, e refazemos as mesmas antigas receitas. Robôs de raízes profundas. E, assim, vivemos mais um dia, mais uma data, mais uma triste data comemorativa. Efemérides malditas.
quarta-feira, 12 de março de 2008
tulipas
*Texto que, na verdade, foi uma resposta ao questionamento de alguém sobre as rosas e as tulipas...
terça-feira, 11 de março de 2008
escolhas
Sinto fome. Tenho sede. Alimento-me. Pedras caem dentro de mim e enchem o meu estômago. Preenchem buracos, ocupam vazios, refazem ruas. Ruas pedregosas que acabam onde os olhos não enxergam. Mas que, sem dúvida, levam até os vales desabitados do meu interior. Algumas vezes, sou planície vazia, desprovida de vida. Outras sou selva viva, intensa, oculta. Por vezes, árvores frondosas habitam o caminho. São infinitas as paisagens, como são infinitas as minhas faces. Caminho por mim mesma e o caminho caminha por mim. No final da estradinha humana de pedras e carne viva, vê-se a luz de uma clareira. Oásis desértico em meio à selva humana. Rosas enfeitam as escolhas. Tulipas desvirtuam a realidade. Hora de ser mulher qualquer. Ficarei com as rosas.
sexta-feira, 7 de março de 2008
canibalismo
Engulo. Sufoco. Abafo. Corro por todos os lados, agoniada. Afogada, engasgada, sufocada. Ando com pressa, a procura de algo. Mas, só encontro um canto. Um canto que me basta. Preciso, apenas, vomitar a ânsia que me engasga. Que afoga, me sufoca, me deixa agoniada. Me jogo de joelhos, abaixo a cabeça para vomitar. Posição de quem procura a redenção. Quero mesmo a redenção pelo pecado de amar. Vomito. Desafogo, desengasgo. Levanto a cabeça. Olho para o chão. Náusea profunda, certo nojo de mim mesma, asco e ódio vazio por ver o que não gostaria de enxergar. Vísceras expostas, profundeza revelada. Junto tudo com as mãos. Quero voltar ao sufoco, ao afogamento, à agonia. Seguro firme as minhas vísceras, pedaços de carne expostos à dor da luz do dia. Rio vermelho, sangue, ainda quente, encharca as mangas da blusa branca. Manchas que não sairão, jamais. Que permanecerão, sempre. Seguro firme meus pedaços, e os engulo, um por um, sentindo o gosto salgado do meu próprio sangue. Gostaria, mesmo, é de experimentar outras carnes. Comer o que não me pertence. Torturar, triturar e vomitar o que jamais poderá ser meu.
segunda-feira, 3 de março de 2008
oceano
Olhos cor de esmeralda. Pedras brutas, lapidadas pela simples alegria do encontro. Calor lá fora, inferno aqui dentro. Breu em pleno dia, olhos fechados. Visão do tato, gosto do olfato, tato da língua. Cabelos longos, sereia terrestre, azul das roupas, mar de pano pelo chão. Veludo branco, macio e de gosto próprio. Rastro vermelho, marcas das mãos, força bruta e leve do amor. Sonho de tecido, despertar quente, fervente. Água morna, cheiro, perfumes. Mergulho profundo em ti.
sábado, 1 de março de 2008
observação
Vejo a cidade do alto. Prédios, com pequeninas janelas brilhantes, enfeitam um céu urbano. Cada janela abriga vidas desconhecidas, escondidas pela escuridão. Calçadas, ruas, carros, pessoas. Tudo e todos cumprindo o seu papel. Cidade em movimento, vivendo ao embalo da rotação vagarosa do mundo. Dia, noite, amanhecer, anoitecer. Idas e vindas, vida, rotina cíclica. Observo tudo do alto, resguardada pela barreira transparente da fina lâmina de vidro. Sou observadora e observada. Olho a cidade do alto. Sinto o vento, a brisa gelada de uma noite qualquer. Soberana, nada escapa aos meus olhos. Deusa urbana do mundo que enxergo e recrio a cada olhar.
quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008
reza íntima
Te vejo ali, inquietante. No alto da plataforma dividida você se faz e se inventa. Recria e reinventa. Sou mais uma dos muitos que te olham. Desejo contido, guardado. Guardado para mais tarde. Para o momento único de nós duas. Do alto, doce santa misteriosa, você me olha. Reza uma reza só nossa. Uma reza muda e gritante. Que berra através dos olhos, olhares quentes e únicos, desejosos de nós duas. Guardamos silêncio, mudez compartilhada. Sabemos o que vem mais tarde. E o saber nos conforta. Mais tarde, mais além, mais fundo. No íntimo âmago teu e meu, também. Penetrantes e provocantes. Línguas que não falam e que rezam. Reza herege da paixão escondida.
segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008
arrebentação
Nos conhecemos tanto, por tanto tempo. Aprendi você e você, também, me aprendeu. Aprendeu e me prendeu. Nos prendemos. Amarramos nossas vidas com o mais perfeito nó. A emenda da corda era perfeita e era como o fio de vida que nos unia através da distância. Fio de vida ou fio de amor. Você viveu a minha e eu vivi a sua. Intensamente, profundamente. Mergulhamos tanto, afundamos tanto. E pela profundidade do mergulho, fechamos os nossos olhos. Para que o sal ardido da realidade não os machucasse. O fio, porém, tinha defeitos, apesar de toda a perfeição. Esquecemos que ele era mais forte, apenas, na imaginação. Imaginário tentador que nos permeava. Ele arrebentou. E me arrebentou. Fiquei com o maior pedaço do amor que nos unia. E dói, ainda dói, carregá-lo, triste fardo, sozinha.
conclusão
Eu não sou eu. Sou qualquer coisa de uma coisa qualquer. Um pedaço menor de uma parte maior do que eu. Maior e que eu não compreendo. Não posso compreender o que está além dos meus limites. Não posso entender o que ultrapassa o tamanho do meu corpo. Tudo o que eu entendo é mera suposição. Julgo entender e conhecer. No fim, gasto o meu tempo à toa. Horas perdidas num entender que não entendo. Crio conceitos, invento palavras. Decoro teorias, refaço filosofias, chego, até, a uma conclusão científica. No entanto, nada disso é preciso, é tudo puro desperdício. Finalmente, eu nada entendo e, cientificamente, compreendo que nem a mim mesma conheço.
domingo, 24 de fevereiro de 2008
abismo
Te vejo tão distante. Você aí, vivendo. Engraçado tudo isso. Escolho as palavras, uma a uma. Escolha cuidadosa, meticulosa. Arremesso pedrinhas para o lado oposto do abismo que nos separa. Você lá e eu aqui. Deste lado, nada nasce. É árido, seco, improdutivo. Sinto sede. Olho a vida que brilha do outro lado. Lá está a água que eu sonho
sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008
24 horas
Vinte e quatro horas de uma vida. Vinte e quatro horas pra viver. Despertar, abrir os olhos, tapa violento da manhã. Luz do dia queimando a retina, início da vida. Ir vivendo, ir levando, apenas mais um dia. Apenas mais essa vida. Aprender a andar, a comer, a falar. Luta diária, guerra curta, vida curta, batalha árdua. Entardecer adolescente sob o sol. Lembrança ainda forte da manhã-infância. Caminhar em direção ao retorno, ao fim, à origem. Anoitecer nostálgico, fim da vida. Banho para dormir. Roupa boa para se deitar. Acabou a luz, acabou o vento, cessou a vida. Caixa escura, lacrada, finada. Reencarnarei amanhã.
quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008
desconhecendo-me(te)
É, não foi ledo engano. Foi um engano verdadeiro. De fato, como nunca e mais do que nunca, eu te conheço. Conheço as suas feridas, os seus problemas, conheço onde “aperta o seu sapato”. Conheço suas dúvidas, seus medos e, até, antecipo suas palavras. Antecipo o beijo que você sonha em receber, antecipo os prazeres com os quais você apenas sonhava, antecipo-me. Reinvento-me. Recrio-me. Entendo-te. Amo demais, entendo demais, tolero demais. Vida de excessos. E, de tanto conhecer, desconheço-te.
terça-feira, 19 de fevereiro de 2008
hereditariedade
Troco CD's, ao invés de discos. No entanto, os meus CD's repetem os mesmos versos chorosos e doídos de outrora. A dor é a mesma. O pranto é, da mesma forma, contido. São as mesmas perguntas. Meu corpo e sentidos são, aos poucos, tomados pela mesma raiva. O coração, igualmente, não responde. Ando de um lado para o outro. O mesmo andar, os mesmos passos, o mesmo ritmo. Dor pulsante do abandono. O futuro repete o passado.
segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008
(des)conhecimento
Conheço cada parte, cada canto. Recosto a cabeça no travesseiro macio e acolhedor que seu corpo quente me oferece. Somos velhas conhecidas. Conheço teu quarto, tua sala, cada cômodo da sua vida. Sonho com teu leito em carne-viva, vermelha, ardente. Passeio por ti como um cego passeia pela vida. Não vejo. Apenas, sinto o gosto e o cheiro. Porém, onde deveria haver um salão de baile vivo e pulsante, sinto o ar gelado e o chão frio de um piso de mármore. A batida melódica da vida não reverbera pelos quatro cantos de ti. Onde deveria caber um mundo, há só nós duas. Dois rostos desconhecidos bailando ao som de um cortejo fúnebre. E eu achei que te conhecia.
sábado, 16 de fevereiro de 2008
assuma-se
Vem cá, mostra a sua cara. É fácil ser o que somos, na teoria. Monstros, doentes num mundo sadio. Carregue esse fardo. Você consegue, sua doente? Doença rara, contagiosa e contagiante. Sofremos desse mal. Todos sofrem. A diferença, o que nos separa em pólos diametralmente opostos, é a nossa coragem. Eu mostro a minha cara. Sou doente. Doente de tanta felicidade. Sofro de um orgulho sem tamanho. E de uma coragem maior ainda. Vem cá, mostre a sua cara. Você agüenta a bofetada do mundo?
quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008
mar morto
Ranjo os dentes. A dor é lascinante. Um gosto salgado molha a língua. Mar vermelho em minha boca. Oceano profundo repleto de células-palavras. Palavras nunca ditas. No fundo do oceano, estão os meus dentes quebrados, como conchas repousando sobre a areia da língua. Partiram-se tal era a força das palavras batendo como navios perdidos contra as rochas marinhas. Nesse oceano vermelho não há vida. O único movimento que existe é o das palavras. As quais vagam como almas perdidas, abafadas pelo silêncio profundo da garganta. Sinta o gosto do sangue.
terça-feira, 12 de fevereiro de 2008
a diferença
Quer bater? Bata. Mas bata com força. Para que eu não tenha força para revidar. Quer cuspir? Cuspa. Mas escarre bem fundo, bem dentro dos meus olhos. Para que eu não consiga escarrar
sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008
despindo-me
Chego
vestindo-me
A noite está fria, arrumo o meu ânimo e levanto. Vou me arrumar para sair. Tomo um banho, para despertar a vontade de colocar os pés para fora de casa. Escolho as roupas, como quem escolhe com qual humor sair. Visto o tênis, a básica segurança de sempre. Coloco as pulseiras e, com elas, coloco a disposição no corpo. Um último ímpeto de ficar em casa é espantado ao dar tchau pra mãe e fechar e porta da frente. Eu volto cedo, mas não me espere. Mais uma noite se vai.
sábado, 26 de janeiro de 2008
vazio
Amores vazios me completam. Preenchem o grande vazio de mim. Palavras vazias me completam. Preenchem os vãos vazios dos dentes na boca. Sentimentos vazios me completam. Preenchem os átrios e os ventrículos do músculo mais vazio do corpo. E eu, vazia, desprovida de mim, completo o mundo. Preencho o lugar que me cabe. Peça decorativa, apanhado de células vazias ocupando um lugar vazio do espaço.
opacidade
sexta-feira, 25 de janeiro de 2008
invasão
Tornado de sonhos, sentidos, sensações. Ele vem de longe e, agora, está tão perto, tão próximo. O vento agarra os meus cabelos, envolve o meu corpo, invade a minha alma. Perigo iminente, visível, real. Tento me segurar, me proteger do vento que quer me retirar daqui. O vento, forte, devastador é, ao mesmo tempo, tão doce, tão seguro, tão familiar. Difícil resistir às forças da natureza. À natureza dos sentidos que me invadem junto com o vento. Deixarei ele entrar, penetrar a carne, bagunçar os sentidos e, por fim, me tirar a razão.
quinta-feira, 24 de janeiro de 2008
velhas tentações
São palavras que me tentam. Carregadas de sentidos, sentimentos e vontades. Perturbam a ordem
quinta-feira, 17 de janeiro de 2008
invenções inventadas
Invenções inventadas. Palavras repetidas, momentos vazios. Procuro o procurar. Procuro o verbo, a ação e não o objetivo. Busco fazer e, depois de feito, perde o sentido. Procuro nada mais que eu saiba. Procuro o vazio. Procuro uma caixa grande cheia de nada. Mas, o que importa, é procurar. Luto por tudo o que quero. Depois que eu consigo, perde a graça. É como pedir demais e se cansar de pedir. Procuro o nada. Procuro a vida. E nada, nada mais.
segunda-feira, 7 de janeiro de 2008
motivos
Quando o cansaço entrar em seu corpo, anime-se. O ânimo traz mais cansaço. Quando você achar que nada vai mudar, não aguarde mudanças, opere-as. No final, até mudar vira rotina. Quando a tristeza bater à sua porta, alegre-se. A alegria, também, traz a tristeza. Quando você não agüentar mais caminhar, corra. Correr, lhe dará mais vontade de parar. Quando o sol estiver forte demais, não feche os olhos, abra-os. Doerá, mas você vai se acostumar com a luz. Quando tudo lhe parecer perdido, aposte mais alto. Quem sabe, você perderá a vida. Quando a noite lhe envolver em breu, respire fundo e deixe-se levar. A noite trará os seus medos, enfrente-os. Quando o seu amor partir, arrume outro. Este, também, partirá. Quando a vida perder a graça, viva mais. Viver nos aproxima da morte. Alegre-se.