Abro a porta que, indiscreta, grita anunciando a chegada. Limpo os pés no tapete surrado de retalhos coloridos. As tábuas do assoalho, marcadas pelo tempo, rangem, reclamando do peso que, há muito, não sentiam. Acendo a luz e espanto-me: ainda há luz. Luz fraca, amarelada, apagada, como tudo, pelo tempo. Os primeiros raios de luz denunciam o abandono dos aposentos. O pó preenche os espaços vazios. Os móveis, todos cinzas, cobertos pela ausência de vida. Ando, vago, revivo e reinvento. Me paro na imagem estática da cama, desde os últimos tempos, desarrumada. No banheiro, branco de outrora, a água amarelada da banheira resplandece, morta e podre, estática. Na cozinha, as xícaras do chá de maçã, os pratos do almoço, a panela do jantar e os talheres que guardam o gosto amargo das nossas salivas, impressões das línguas. Ainda há roupa no varal, estendida, esturricada pela falta de movimento, fibras petrificadas. E, no chão, os lençóis sujos da noite que, um dia, foi a noite anterior. A vitrola da sala grita e berra, pobre muda, som surdo, barulho sem voz, mas, extremamente, familiar. As janelas exibem-se, provocantes. Sinto vontade de toca-las, ímpeto, impulso de escancará-las para o dia. Para que a vida entre e penetre o virgem mausoléu sombrio. Nem que seja, apenas, mais essa vez.
quinta-feira, 24 de abril de 2008
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Por
Guta Brandt
às
22:27
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