quinta-feira, 27 de março de 2008

círculo secular

Você retorna. Volta, contorna, circula e faz rodeios em torno de mim. Não entendo e sigo assim mesmo, sem entender. Me confundo com seus círculos, me perco na roda que insiste em girar e parar, sempre, no mesmo lugar. Coisas estranhas. Mas, é assim que é o mundo. A Terra é assim mesmo. Dá voltas, gira em seu próprio eixo e sempre acaba caindo no mesmo ponto. Não adianta tentar mudar o curso. Você, filha da Terra, amante do mundo, não é diferente. Imita sua mãe, reproduz seus movimentos circulares. Volta, anda, vaga e se perde pelo mundo, vasto mundo de belezas tentadoras. Mas retorna, e recai novamente em mim. Mas, também sou filha da Terra. Não estou mais no mesmo lugar. Está na minha hora de vagar por aí.

domingo, 23 de março de 2008

minha menina

Noites em claro. Olhos irrequietos, passeiam, dão voltas, giram em suas órbitas. A escuridão é tanta que qualquer ponto de luz me cega. A menina, negra e brilhante, caminha pelos caminhos circulares de uma estrada castanha. Caminha, corre, retorna e se perde. Perde-se sem saber o caminho de volta e vaga, sozinha e cansada, pelos vales redondos e pelos morros orbitais. Rio salgado de águas límpidas. A menina se banha e se limpa, retira de si as impurezas que tornam opaco o seu brilho. Menina pequena e frágil, recolhe-se à insignificância de seu tamanho. Mas, engrandece-se em sua plenitude. Mais uma vez ela se fecha. Amanhã, no entanto, é outro dia.

efemérides

Datas comemorativas. Belas datas comemorativas. Calendário marcado, fadado através das gerações. Triste sina. Os mesmos dias, as mesmas belas datas comemorativas. Nada muda, apesar da mudança dos anos. Os dias passam, as estações vêm e vão. E o calendário, pobre calendário, continua igual. Datas repetidas, famílias reproduzem os mesmos gestos, as mesmas tradições de outrora. E nada, nada muda. Permanece tudo igual, como numa triste linha de montagem secular. Repetimos os abraços, reproduzimos os sorrisos, fazemos, e refazemos as mesmas antigas receitas. Robôs de raízes profundas. E, assim, vivemos mais um dia, mais uma data, mais uma triste data comemorativa. Efemérides malditas.

quarta-feira, 12 de março de 2008

tulipas

As tulipas são simples, delicadas, profundas e, ao mesmo tempo, fortes, fortaleza em si. Aguentam as tempestades, o frio seco e gelado dos países do hemisfério norte. São raras, muito raras... E caras. Caras não, apenas, em preço, mas caras em cuidado, em compreensão, em entendimento. E, apesar de toda a forte fragilidade e a simples beleza, elas têm um grande problema: não resistem ao verão e ao coração quente dos que vivem no hemisfério sul. O calor as queima como o sol queimando a pele branca e frágil de quem é acostumado à frieza. São belas e fortes mas, frágeis e secas quando expostas ao amor quente e bruto de quem vive por aqui.


*Texto que, na verdade, foi uma resposta ao questionamento de alguém sobre as rosas e as tulipas...

terça-feira, 11 de março de 2008

escolhas

Sinto fome. Tenho sede. Alimento-me. Pedras caem dentro de mim e enchem o meu estômago. Preenchem buracos, ocupam vazios, refazem ruas. Ruas pedregosas que acabam onde os olhos não enxergam. Mas que, sem dúvida, levam até os vales desabitados do meu interior. Algumas vezes, sou planície vazia, desprovida de vida. Outras sou selva viva, intensa, oculta. Por vezes, árvores frondosas habitam o caminho. São infinitas as paisagens, como são infinitas as minhas faces. Caminho por mim mesma e o caminho caminha por mim. No final da estradinha humana de pedras e carne viva, vê-se a luz de uma clareira. Oásis desértico em meio à selva humana. Rosas enfeitam as escolhas. Tulipas desvirtuam a realidade. Hora de ser mulher qualquer. Ficarei com as rosas.

sexta-feira, 7 de março de 2008

canibalismo

Engulo. Sufoco. Abafo. Corro por todos os lados, agoniada. Afogada, engasgada, sufocada. Ando com pressa, a procura de algo. Mas, só encontro um canto. Um canto que me basta. Preciso, apenas, vomitar a ânsia que me engasga. Que afoga, me sufoca, me deixa agoniada. Me jogo de joelhos, abaixo a cabeça para vomitar. Posição de quem procura a redenção. Quero mesmo a redenção pelo pecado de amar. Vomito. Desafogo, desengasgo. Levanto a cabeça. Olho para o chão. Náusea profunda, certo nojo de mim mesma, asco e ódio vazio por ver o que não gostaria de enxergar. Vísceras expostas, profundeza revelada. Junto tudo com as mãos. Quero voltar ao sufoco, ao afogamento, à agonia. Seguro firme as minhas vísceras, pedaços de carne expostos à dor da luz do dia. Rio vermelho, sangue, ainda quente, encharca as mangas da blusa branca. Manchas que não sairão, jamais. Que permanecerão, sempre. Seguro firme meus pedaços, e os engulo, um por um, sentindo o gosto salgado do meu próprio sangue. Gostaria, mesmo, é de experimentar outras carnes. Comer o que não me pertence. Torturar, triturar e vomitar o que jamais poderá ser meu.

segunda-feira, 3 de março de 2008

oceano

Olhos cor de esmeralda. Pedras brutas, lapidadas pela simples alegria do encontro. Calor lá fora, inferno aqui dentro. Breu em pleno dia, olhos fechados. Visão do tato, gosto do olfato, tato da língua. Cabelos longos, sereia terrestre, azul das roupas, mar de pano pelo chão. Veludo branco, macio e de gosto próprio. Rastro vermelho, marcas das mãos, força bruta e leve do amor. Sonho de tecido, despertar quente, fervente. Água morna, cheiro, perfumes. Mergulho profundo em ti.

sábado, 1 de março de 2008

observação

Vejo a cidade do alto. Prédios, com pequeninas janelas brilhantes, enfeitam um céu urbano. Cada janela abriga vidas desconhecidas, escondidas pela escuridão. Calçadas, ruas, carros, pessoas. Tudo e todos cumprindo o seu papel. Cidade em movimento, vivendo ao embalo da rotação vagarosa do mundo. Dia, noite, amanhecer, anoitecer. Idas e vindas, vida, rotina cíclica. Observo tudo do alto, resguardada pela barreira transparente da fina lâmina de vidro. Sou observadora e observada. Olho a cidade do alto. Sinto o vento, a brisa gelada de uma noite qualquer. Soberana, nada escapa aos meus olhos. Deusa urbana do mundo que enxergo e recrio a cada olhar.