Um dia ela estava andando. Andanças rotineiras pelos vales do sul. Sobe, equilibra-se no parapeito estreito, abre os braços e cai. Cai até sentir a pedra áspera do asfalto arranhar-lhe o corpo e a alma. Imóvel, incapaz, perde os sentidos. Sente somente a dor que corta-lhe os músculos e a carne, que parte os ossos em pedaços. Abre os olhos, olhos etéreos, não mais são feitos de carne. Olha-se então, esticada, e sente as dores do corpo que não mais lhe pertence. Grita, berra. Mas, pobre moça, ninguém a escuta. Não há mais garganta ou boca para profanar o desespero que sente. Desfigurada, desconsertada, não sente, apenas, a dor de sua matéria mutilada. Mas, também, o desespero de não conseguir chegar perto do corpo que há pouco era seu, tamanha a aglomeração. Ao longe, vem alguém correndo, cada vez mais perto. É a santa mãe que outrora deu à luz e que, inconformada, devolverá o fruto crescido de seu ventre à escuridão. Não a escuridão primeira, do ventre quente. Mas a escuridão póstuma da terra fria. E, agora, além do desespero e da dor, sente a angústia de não poder dizer à mãe: “Estou aqui, ainda”. Ela não enxerga e não escuta. O esforço é em vão. Passado algum tempo, mais aglomeração. Todos choram a flor mutilada e despetalada, talvez ainda em botão, dentro da caixa de madeira escura. Ao lado, uma moça bonita e jovem. Olhos banhados, rosto inchado e a certeza, mais do que certa, de que o boomerang sempre volta e de que nem a morte estanca o sangue e a dor de quem sofre.
Um comentário:
Confesso que estou um pouco cansada de seus textos, Guta. Cansada de sentir tanto, sempre, cada palavra que você diz; cansada de me arrepiar a cada frase lida; cansada de observar tamanha perfeição contida em tão poucas linhas; cansada de ver lições de vida em forma de texto. Você é deliciosamente enfadonha. Tenho muito orgulho de você, bah! :D Um beijo grande!
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