quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

reza íntima

Te vejo ali, inquietante. No alto da plataforma dividida você se faz e se inventa. Recria e reinventa. Sou mais uma dos muitos que te olham. Desejo contido, guardado. Guardado para mais tarde. Para o momento único de nós duas. Do alto, doce santa misteriosa, você me olha. Reza uma reza só nossa. Uma reza muda e gritante. Que berra através dos olhos, olhares quentes e únicos, desejosos de nós duas. Guardamos silêncio, mudez compartilhada. Sabemos o que vem mais tarde. E o saber nos conforta. Mais tarde, mais além, mais fundo. No íntimo âmago teu e meu, também. Penetrantes e provocantes. Línguas que não falam e que rezam. Reza herege da paixão escondida.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

arrebentação

Nos conhecemos tanto, por tanto tempo. Aprendi você e você, também, me aprendeu. Aprendeu e me prendeu. Nos prendemos. Amarramos nossas vidas com o mais perfeito nó. A emenda da corda era perfeita e era como o fio de vida que nos unia através da distância. Fio de vida ou fio de amor. Você viveu a minha e eu vivi a sua. Intensamente, profundamente. Mergulhamos tanto, afundamos tanto. E pela profundidade do mergulho, fechamos os nossos olhos. Para que o sal ardido da realidade não os machucasse. O fio, porém, tinha defeitos, apesar de toda a perfeição. Esquecemos que ele era mais forte, apenas, na imaginação. Imaginário tentador que nos permeava. Ele arrebentou. E me arrebentou. Fiquei com o maior pedaço do amor que nos unia. E dói, ainda dói, carregá-lo, triste fardo, sozinha.

conclusão

Eu não sou eu. Sou qualquer coisa de uma coisa qualquer. Um pedaço menor de uma parte maior do que eu. Maior e que eu não compreendo. Não posso compreender o que está além dos meus limites. Não posso entender o que ultrapassa o tamanho do meu corpo. Tudo o que eu entendo é mera suposição. Julgo entender e conhecer. No fim, gasto o meu tempo à toa. Horas perdidas num entender que não entendo. Crio conceitos, invento palavras. Decoro teorias, refaço filosofias, chego, até, a uma conclusão científica. No entanto, nada disso é preciso, é tudo puro desperdício. Finalmente, eu nada entendo e, cientificamente, compreendo que nem a mim mesma conheço.

domingo, 24 de fevereiro de 2008

abismo

Te vejo tão distante. Você aí, vivendo. Engraçado tudo isso. Escolho as palavras, uma a uma. Escolha cuidadosa, meticulosa. Arremesso pedrinhas para o lado oposto do abismo que nos separa. Você lá e eu aqui. Deste lado, nada nasce. É árido, seco, improdutivo. Sinto sede. Olho a vida que brilha do outro lado. Lá está a água que eu sonho em beber. A comida que alimentaria para sempre o corpo e a alma. Levanto-me. Cansei de tentar contato, de atirar pedrinhas. Seguro firme o cabo da enxada. Trabalho árduo sobre o solo vazio de mim mesma.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

24 horas

Vinte e quatro horas de uma vida. Vinte e quatro horas pra viver. Despertar, abrir os olhos, tapa violento da manhã. Luz do dia queimando a retina, início da vida. Ir vivendo, ir levando, apenas mais um dia. Apenas mais essa vida. Aprender a andar, a comer, a falar. Luta diária, guerra curta, vida curta, batalha árdua. Entardecer adolescente sob o sol. Lembrança ainda forte da manhã-infância. Caminhar em direção ao retorno, ao fim, à origem. Anoitecer nostálgico, fim da vida. Banho para dormir. Roupa boa para se deitar. Acabou a luz, acabou o vento, cessou a vida. Caixa escura, lacrada, finada. Reencarnarei amanhã.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

desconhecendo-me(te)

É, não foi ledo engano. Foi um engano verdadeiro. De fato, como nunca e mais do que nunca, eu te conheço. Conheço as suas feridas, os seus problemas, conheço onde “aperta o seu sapato”. Conheço suas dúvidas, seus medos e, até, antecipo suas palavras. Antecipo o beijo que você sonha em receber, antecipo os prazeres com os quais você apenas sonhava, antecipo-me. Reinvento-me. Recrio-me. Entendo-te. Amo demais, entendo demais, tolero demais. Vida de excessos. E, de tanto conhecer, desconheço-te.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

hereditariedade

Troco CD's, ao invés de discos. No entanto, os meus CD's repetem os mesmos versos chorosos e doídos de outrora. A dor é a mesma. O pranto é, da mesma forma, contido. São as mesmas perguntas. Meu corpo e sentidos são, aos poucos, tomados pela mesma raiva. O coração, igualmente, não responde. Ando de um lado para o outro. O mesmo andar, os mesmos passos, o mesmo ritmo. Dor pulsante do abandono. O futuro repete o passado.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

(des)conhecimento

Conheço cada parte, cada canto. Recosto a cabeça no travesseiro macio e acolhedor que seu corpo quente me oferece. Somos velhas conhecidas. Conheço teu quarto, tua sala, cada cômodo da sua vida. Sonho com teu leito em carne-viva, vermelha, ardente. Passeio por ti como um cego passeia pela vida. Não vejo. Apenas, sinto o gosto e o cheiro. Porém, onde deveria haver um salão de baile vivo e pulsante, sinto o ar gelado e o chão frio de um piso de mármore. A batida melódica da vida não reverbera pelos quatro cantos de ti. Onde deveria caber um mundo, há só nós duas. Dois rostos desconhecidos bailando ao som de um cortejo fúnebre. E eu achei que te conhecia.

sábado, 16 de fevereiro de 2008

assuma-se

Vem cá, mostra a sua cara. É fácil ser o que somos, na teoria. Monstros, doentes num mundo sadio. Carregue esse fardo. Você consegue, sua doente? Doença rara, contagiosa e contagiante. Sofremos desse mal. Todos sofrem. A diferença, o que nos separa em pólos diametralmente opostos, é a nossa coragem. Eu mostro a minha cara. Sou doente. Doente de tanta felicidade. Sofro de um orgulho sem tamanho. E de uma coragem maior ainda. Vem cá, mostre a sua cara. Você agüenta a bofetada do mundo?

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

mar morto

Ranjo os dentes. A dor é lascinante. Um gosto salgado molha a língua. Mar vermelho em minha boca. Oceano profundo repleto de células-palavras. Palavras nunca ditas. No fundo do oceano, estão os meus dentes quebrados, como conchas repousando sobre a areia da língua. Partiram-se tal era a força das palavras batendo como navios perdidos contra as rochas marinhas. Nesse oceano vermelho não há vida. O único movimento que existe é o das palavras. As quais vagam como almas perdidas, abafadas pelo silêncio profundo da garganta. Sinta o gosto do sangue.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

a diferença

Quer bater? Bata. Mas bata com força. Para que eu não tenha força para revidar. Quer cuspir? Cuspa. Mas escarre bem fundo, bem dentro dos meus olhos. Para que eu não consiga escarrar em ti. Quer o que é meu? Tome. Mas arranque com vontade. Para que as minhas conquistas não retornem pelo simples fato de serem minhas. Quer ser melhor do que eu? Seja. Mas, não esqueça, para isso, será preciso coragem, força, garra e, acima de tudo, ser mulher. Você pode com isso? Eu posso com você.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

despindo-me

Chego em casa. Na memória, um único desejo. Vago pelos cômodos, como quem vaga, massa inerte, por mim mesma. Paro, busco um pedaço de tecido felpudo estendido em algum lugar. Tiro o relógio do pulso, como quem quer livrar-se do peso das horas. Desamarro o tênis, chega de segurança, quero fragilidade. Tiro a roupa, peça por peça, despindo-me do cansaço do meu dia. Entro, deixo a água correr pela pele fria. E o cheiro doce de banho quente entrar pelas narinas. Mais um dia chega ao fim.

vestindo-me

A noite está fria, arrumo o meu ânimo e levanto. Vou me arrumar para sair. Tomo um banho, para despertar a vontade de colocar os pés para fora de casa. Escolho as roupas, como quem escolhe com qual humor sair. Visto o tênis, a básica segurança de sempre. Coloco as pulseiras e, com elas, coloco a disposição no corpo. Um último ímpeto de ficar em casa é espantado ao dar tchau pra mãe e fechar e porta da frente. Eu volto cedo, mas não me espere. Mais uma noite se vai.