Hoje estava andando pela rua. Ruas que há muito não visitava. Numa dessas viagens que a vida acaba nos obrigando a fazer. De repente, avistei um prédio. Construção antiga, desgastada pelo tempo. Sabia que seria difícil. Mas, ainda assim, cogitei a possibilidade remota de te encontrar. Antes de questionar o porteiro sobre a sua existência, fiz um esforço para tentar lembrar-me da voz e, também, prever qual seria a sua reação e a sua aparência, depois de tantos anos. Após longos minutos, entrei no hall do prédio e subi as escadas (aquelas mesmas que, um dia, vencemos juntas, carregando a mala pesada no dia da minha chegada). Olhei para o porteiro e perguntei sobre você. A moça bonita e simpática que, há tempos, viveu ali. O porteiro era novo, e não lembrava da moça descrita. “Mas moça, o porteiro que entra depois de mim é bem antigo”, ele disse. Voltei depois para falar com o antigo porteiro. “Olha, eu lembro dela, sim. Mas, há muitos anos ela se foi”, ele lembrou. Foi para onde, meu Deus? E assim, questionando-me, eu também parti.
sábado, 26 de abril de 2008
quinta-feira, 24 de abril de 2008
dia anterior
Abro a porta que, indiscreta, grita anunciando a chegada. Limpo os pés no tapete surrado de retalhos coloridos. As tábuas do assoalho, marcadas pelo tempo, rangem, reclamando do peso que, há muito, não sentiam. Acendo a luz e espanto-me: ainda há luz. Luz fraca, amarelada, apagada, como tudo, pelo tempo. Os primeiros raios de luz denunciam o abandono dos aposentos. O pó preenche os espaços vazios. Os móveis, todos cinzas, cobertos pela ausência de vida. Ando, vago, revivo e reinvento. Me paro na imagem estática da cama, desde os últimos tempos, desarrumada. No banheiro, branco de outrora, a água amarelada da banheira resplandece, morta e podre, estática. Na cozinha, as xícaras do chá de maçã, os pratos do almoço, a panela do jantar e os talheres que guardam o gosto amargo das nossas salivas, impressões das línguas. Ainda há roupa no varal, estendida, esturricada pela falta de movimento, fibras petrificadas. E, no chão, os lençóis sujos da noite que, um dia, foi a noite anterior. A vitrola da sala grita e berra, pobre muda, som surdo, barulho sem voz, mas, extremamente, familiar. As janelas exibem-se, provocantes. Sinto vontade de toca-las, ímpeto, impulso de escancará-las para o dia. Para que a vida entre e penetre o virgem mausoléu sombrio. Nem que seja, apenas, mais essa vez.
terça-feira, 22 de abril de 2008
desertificação
Areia seca, fervente. Sol queimando o rosto, queimando a alma. Os raios entram através da carne permeável. Os olhos se fecham, a luz é forte demais. O corpo verte água. Um rio se forma. A ilusão de um rio. Miragens desérticas invadem o ser. A vida vai, aos poucos, desaparecendo sob o sol. Como uma poça d’água evaporando sobre a calçada. Lá na frente, entre as fendas quentes da areia, existe um oásis. Corra! Ainda há tempo para beber a minha alma.